Por Marco André Schwarzstein

Nos anos 80, Roger Woolger, inglês, analista treinado pelo Instituto Jung de Zurique, formado em Psicologia pela Universidade de Oxford e com doutorado em Religiões Comparadas pela Universidade de Londres, teve, durante um curso intenso de meditação, uma experiência transformadora.
Nela se sentia como um soldado cruzado enviado pelo Papa para dizimar a heresia catara, no Sul da França. Assustado com a brutalidade fria do personagem e com o conteúdo dramático das cenas, Roger foi consultar o instrutor responsável pelo curso, que lhe disse:
“Ah, são só vidas passadas. Continue a meditar”.
O impacto foi tão grande que Roger com mais alguns amigos e psicoterapeutas começaram a fazer trocas de regressões entre eles, usando a pequena literatura disponível na época.
A partir desse embrião, totalmente experimental, por tentativas e erros, foi se desenvolvendo o que viria a ser hoje o Deep Memory Process.
Morris Netherton, em 1967, pioneiro da terapia regressiva, tinha já cunhado o termo “Terapia de Vidas Passadas”, título de seu primeiro livro(1).
Maria Julia Peres, no Brasil, começou com suas pesquisas em 1980. Logo se afasta das interpretações espíritas ou mediúnicas dos fenômenos observados, deixando bem claro que se tratavam de “supostas vidas anteriores”, sendo a regressão de memória um processo de pura natureza psicoterápica(2).
Em 1987, Roger Woolger publica seu clássico “Other Lives, Other Selves”, traduzido para o português por “As Várias Vidas da Alma”, na Ed. Cultrix.
Mais tarde descobre o Brasil e o Brasil descobre Roger Woolger, no Congresso da Associação Internacional Transpessoal (ITA) em 1996, em Manaus.
A história de uma grande paixão correspondida se inicia, para terminar em agosto de 2011, no Caldeirão Brasileiro, encontro promovido por ele em Arraial de Ajuda. Essa seria a sua última atividade pública, antes de sua morte em 17 de novembro de 2011, nos EUA.
Em 1998, Roger retorna ao Brasil, iniciando seus cursos de formação em terapia regressiva. O formato de seus treinamentos assumia aos poucos sua forma definitiva.
Juntei-me a ele então e o acompanhei, como assistente, tradutor, coordenador do treinamento e amigo, por mais de 80 módulos de 5 dias cada, até sua morte.
Foram treze anos de muita atividade, com duas a três visitas anuais, treinamentos em Campinas, Serra da Bocaina, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo, Águas de Lindóia, Brasília, Recife, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre e centenas de terapeutas certificados.
Roger recebeu no Brasil o reconhecimento definitivo por seu trabalho. Retribuía com calor humano, seu dom único de professor e seu profissionalismo amoroso.
O trabalho ainda buscava por seu nome definitivo. Nos primeiros anos, Roger o denominou de Terapia Regressiva Integral. Nesse período, se firmaram algumas de suas características específicas. Destaco as duas que me parecem fundamentais:
- O trabalho com o corpo
Roger observou que o corpo está repleto de memórias e histórias traumáticas. E que aprofundando essas sensações corporais podemos induzir “vivencias passadas” e, surpreendentemente, observar que após o tratamento desaparecem dores crônicas ou pontuais, queixas somáticas, etc.
Percepção, memórias, emoções, consciência, criatividade e corpo formam, na prática do Deep Memory Process, um todo integrado e dinâmico.
- O trabalho com a imaginação
Toda “vivência passada”, gostaria de propor o termo “psicodrama imaginal”(3), é experienciada por meio da incorporação e dramatização da vida de um personagem, diferente do nosso eu da vida atual. Esse personagem nasce, vive e, inevitavelmente, morre.
O Deep Memory Process dedica particular atenção aos momentos da morte do personagem e observa que, praticamente em todos os casos, a consciência não desaparece com a morte do corpo físico.
O terapeuta continua guiando a história no espaço pós-morte, chamado bardo (4).
Nesse local imaginal e extremamente plástico podem ocorrer resoluções de conflitos inacabados, encontros com seres queridos, trabalhos gestálticos, alguns trabalhos de inspiração xamânica (criteriosamente selecionados e adaptados ao DMP), trabalhos corporais, descargas emocionais, mudanças de padrões cristalizados, etc.
O Deep Memory Process não se preocupa em discutir de onde viriam tais vivências.
Seriam memórias verdadeiras e literais de supostas outras vidas, um acesso a dramas e cenas arquetípicas do ser humano ou, como afirmam alguns céticos, “síndromes da falsa memória”?
Não cabe a nós, psicoterapeutas, nos posicionarmos sobre tais questões. Elas são de âmbito estritamente pessoal. O que nos importa é a dimensão psicoterápica e os resultados obtidos após algumas poucas sessões de trabalho intenso.
O Deep Memory Process, ao trabalhar com traumas, induz um “deslocamento terapêutico criativo”, que permite, através de uma atuação regressiva, a expressão mental, emocional e corporal de um personagem em uma vivência passada. Através do trabalho com esse ‘self da vivência passada’, o complexo do cliente pode ser resolvido, através de uma variedade de métodos psicodinâmicos e catárticos. O personagem se torna o portador do trauma e seu respectivo complexo será posteriormente integrado à vida do cliente.
Vale lembrar que o deslocamento é uma função natural da psique. No DMP, ele pode ser compreendido não como a defesa inconsciente, descrita por Anna Freud, mas sim como um deslocamento poético, a metonímia(5), e uma metáfora, como propôs Lacan, ao afirmar que o inconsciente obedece às mesmas leis estruturais que a linguagem.
Como num sonho, a psique não diferencia entre o fato “real” e a figura de linguagem. O deslocamento, no sentido freudiano, também se aplica ao DMP, já que frequentemente é mais fácil enfrentar, por exemplo, uma situação de abuso psíquico ou sexual na vida atual quando ela é deslocada para uma vivência passada.
As estruturas do cliente vão se reforçando, e o tornando mais capaz de confrontar e integrar a vivência biográfica. Os resultados desse trabalho podem ser tão transformadores e visíveis que levantam, naturalmente, indagações sobre os mecanismos envolvidos nos psicodramas de vivências passadas.
O DMP tem, ao longo dos anos, reunido um material que poderá contribuir com a discussão sobre novas epistemologias não-hegemônicas na psicologia no século XXI.
O que são memórias? O que são lembranças? Qual o papel das imagens na percepção e compreensão do mundo e da vida? Imagens curam? Como as imagens “criam sentido” e contribuem para o bem-estar do indivíduo?
Roger Woolger fundamentou o Deep Memory Process para muito além dessas indagações, usando todo o potencial existente nos conteúdos das cenas arquetípicas humanas, no inesgotável campo de possibilidades de nossos dramas, desde as origens da humanidade.
Através do DMP podemos assim trabalhar padrões repetitivos, traumas, distúrbios somáticos, etc. de forma prática e eficiente. Basta, muitas vezes, contar a história da sua origem, a partir do corpo e de uma imaginação criativa.
“Um trabalho necessário e satisfatório para a alma que se reconhece e se espelha assim em suas próprias histórias…”
Brasília – DF, Maio de 2015.